Trato principalmente do norte teórico e a praxis adotada pela Igreja Católica na América Latina ontem e os para onde caminhamos após a escolha de Ratzinger para sumo pontífice.
Habemus Papam?
Allan Mahet
A primeira visita de Bento XVI ao Brasil veio cercada de polêmica. Em muito devido ao tema do aborto que cada vez mais ganha as páginas dos jornais e as pautas políticas. Fora isso chamou atenção a primeira canonização realizada fora dos limites do Vaticano, em um momento propício para a renovação de fé católica no Brasil que parou de perder espaço para as religiões protestantes.
Além dos pronunciamentos e encontros, Bento XVI em seu ultimo dia em solo brasileiro promoveu a abertura da V Conferência Episcopal da América Latina e Caribe. Sua presença, tão providencial quanto à 'santificação' de Frei Galvão em solo brasileiro, a que tudo indica, irá ditar os rumos das resoluções que serão promovidas no encontro e que nortearão a atuação da Igreja na região pelos próximos dez ou vinte anos.
Vive-se na América Latina nos últimos anos uma efervescência da esquerda - se legítima ou não é outro assunto - da qual poucas vezes em nossa recente história podemos ver. É justamente esse furor vermelho que incomoda 'Roma'.
Em 1958, quando as sublevações se indicavam ao redor do mundo, João XXIII, de papado transitório a princípio, promoveu drásticas mudanças na Igreja, a aproximando de seus fiéis, descentralizando o poder papal e abrindo as portas do Palácio de São Pedro ao povo. Ou quase isso. Antes da conclusão dos trabalhos do primeiro Concílio em quase cem anos, convocado por ele, o carismático e inovador Papa morreu, o que veio a comprometer os documentos finais do encontro mundial.
Contudo, os ecos promovidos pelo Concílio Vaticano II atravessaram o oceano e atracaram em terras tropicais. Em 1968, a II Conferência Episcopal da América Latina e Caribe, em Medellín deu o que podemos considerar o passo mais à esquerda que a Igreja (ou parte dela) tinha visto em dois milênios. As ditaduras pululavam como pragas em todo o continente e na visão dos bispos latino-americanos a Igreja não poderia se omitir. E assim como Jesus que escolheu ficar do lado dos miseráveis e oprimidos, a Igreja do Terceiro Mundo fez sua opção pelos pobres, seja através das lutas populares, seja pela conscientização da população sobre seus direitos.
Na Conferência de Puebla (1979) essa posição é reafirmada: a necessidade de uma tomada de posição frente à desumana realidade Latino-Americana.
Alguns setores da Igreja realmente procuram assumir esse papel e a partir do discurso de Medellín e Puebla se aventuraram na busca de uma práxis cristã alinhada com a defesa do povo e pela liberdade. Nasce assim a Teologia da Libertação. Com ela a Igreja ganha um papel fundamental na luta de classes, trabalhando em prol da transformação da ordem societária e se posicionando contra a opressão dos pobres pelos ricos. A promoção dos ideais libertários avançou em largos passos em um continente assolado pela opressão direitista de seus generais. Seus líderes combateram o massacre promovido pelos governantes latinos e por isso foram perseguidos, torturados, mortos (até pelas costas como Padre Jozimo), mas sedimentaram em nosso solo uma teologia na qual Cristo se mostra como um revolucionário, um transformador, que desce da cruz e ao lado dos pobres encara o seu algoz. E 'sua' igreja deveria cumprir esse papel. Uma igreja dos pobres (como Jesus) e para os pobres (como seu rebanho).
Obviamente esse posicionamento radicalmente 'humano' e progressista não ressoou agradavelmente nos corredores palacianos do clérigo romano que não mais contava com a presença do bonachão João XXIII. Como poderia uma organização que se esbanja em ouro e investe em bolsas de valores pelo mundo ir de encontro ao sistema capitalista? Como ficaria a imagem dessa instituição perante as potências mundiais que exploram o terceiro mundo? O medo da investida revolucionária em seu interior fez o Vaticano adotar medidas drásticas. Bispos foram transferidos de suas dioceses, reprimiu-se a atuação de padres em organizações populares, promoveram ameaças de excomunhão e impuseram o silêncio obsequioso a Leonardo Boff (ainda frei) nome máximo da Igreja da Libertação no Brasil, em um processo conduzido pelo ainda cardeal Ratzinger, presidente do novo tribunal da Santa Inquisição.
Assim a TL, reprimida, enfraqueceu e se restringiu aos círculos das Comunidades Eclesiais de Base.
O carismático João Paulo II com sua pesada mão tratou de suprimir a mais recente tentativa da TL se reerguer em sua última visita em solo tupiniquim e mais uma vez o conservadorismo falou mais alto e o povo católico da América Latina retornou ao seu papel de subserviente a Deus, à Igreja, ao Papa, aos grupos dominantes e suas leis. Os leigos retornaram ao degrau mais baixo do altar, afastando-se de Cristo, Jesus. Esta sombra que pairava sobre a Igreja dos bilhões de fiéis se enegreceu no último Conclave no qual a ala mais conservadora se fez novamente presente elegendo o mesmo Ratzinger, que calou Boff, ao posto (cargo) mais alto da Igreja de Roma.
É com a rigidez na defesa dos dogmas milenares (e outros nem tão antigos assim) que o `novo' Papa deu início aos trabalhos de Aparecida. Sua postura monolítica refrata qualquer discurso mais progressista. A crítica ao Marxismo é um aviso claro e sonoro aos religiosos e leigos que vivem na luta. O terror que provocou aos defensores da Igreja libertadora permanece vivo na memória de todo o Clero e são os sustentáculos para a contenção de uma reedição de Medellín e Puebla. A opção preferencial pelos pobres continua marcando a linha orientadora da Igreja na região, mas a luta permanecerá relegada a favor da benesse e da caridade. Nada mais conservador do que a consentimento pela doação. Ao clamar pela independência da Igreja com relação às ideologias políticas limita a defesa dos espoliados à evangelização. Nada mais conservador do que fugir à luta.
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