Entre acertos e erros, a minissérie da Netflix "Senna" impressiona pelo apuro técnico e emociona tanto novos quanto antigos fãs do piloto brasileiro, falecido em 1994. No entanto, a narrativa poderia ter evoluído com algumas escolhas diferentes.
Pretendida há mais de uma década, uma superprodução que narrasse a vida de Ayrton Senna já flertou com o cinema, chegando a considerar Antonio Banderas como protagonista. A dificuldade e alto custo em recriar cenários e o controle exercido pela família Senna sempre foram obstáculos para o projeto, que finalmente ganhou vida na Netflix, sob a direção de Vicente Amorim e Júlia Rezende, com Gabriel Leone interpretando o ex-piloto brasileiro.
Os seis episódios, com cerca de uma hora cada, expõem parte da carreira de Senna no Brasil, retrata sua ida para a Inglaterra para competir na Fórmula 3 e, posteriormente, sua entrada na Fórmula 1. Antes de ascender à McLaren, a minissérie destaca sua corrida em Mônaco pela Toleman em 1984, onde chegou em segundo lugar, logo atrás de Prost, sendo impedido de ultrapassá-lo por uma manobra que encerrou a prova antecipadamente. Término precoce custou o campeonato ao francês por 0,5 ponto. A série segue com sua trajetória na Lotus, equipe pela qual conquistou sua primeira vitória, em Portugal no ano de 1985. Um salto para 1988 com a entrada de Senna na McLaren e seu primeiro título na nova escuderia, com direito ao emocionante tema da vitória.
A série também cobre o campeonato de 1989, com a mãozinha de Balestre, então presidente da FIA, favorecendo (mais uma vez) Prost. A narrativa prossegue com o bicampeonato do brasileiro em 1990, marcado pela batida vingativa no início da corrida no Japão, e o tricampeonato, um ano depois, também em solo nipônico. Os anos de 1992 e 1993 são, em grande parte, ignorados para que o último episódio possa focar na breve passagem de Senna pela Williams. A vida pessoal do piloto também é abordada, desde seu relacionamento com sua única esposa, Lilian, seu famoso namoro com a ex-apresentadora Xuxa e, quase tão rápido quanto uma volta, mostra algumas cenas com Adriane Galisteu.
De cara, o que chama a atenção positivamente é a qualidade técnica, refletida na incrível reconstituição da época e no magnífico trabalho de construção (digital e física) dos carros e autódromos, em algo muito próximo ao visto no filme "Rush"
Diversas técnicas foram usadas para proporcionar essa imersão, incluindo o desenvolvimento de fiéis reproduções para cenas com closes até o uso de CGI com captura de QR code em esqueletos dos carros nas cenas de corridas, com um resultado extraordinário, com, talvez, uma leve exceção para os carros da Williams usados em 1994, apenas para aqueles mais detalhistas. A produção lançou mão do uso de telas LED, tecnologia que substitui o cromakey e projeções em tela e que está presente em grandes produções como "The Mandalorian", ganhando muito em realismo.
Outro acerto é a representação gráfica de uma fala de Ayrton, sobre se sentir em um túnel contínuo em uma corrida em Mônaco, que consegue proporcionar uma conexão imediata para aqueles que já conhecem a história. Um efeito semelhante é usado para representar o momento no qual Senna encontra espaço para ultrapassagens, mas nesse caso o uso repetitivo acaba ficando cansativo e pedante.
O elenco merece destaque. Gabriel Leone, que interpreta o protagonista, pode não se parecer muito com Senna, mas a maquiagem, penteado e, sobretudo, o cuidado com o gestual do tricampeão, conferem ao espectador a dose certa de credibilidade. Viviane Senna, irmã do ex-piloto, Ron Dennis, chefe da McLaren, e Balestre também convencem na caracterização. Pamela Tomé, que interpreta a rainha dos baixinhos, impressiona pela similaridade, embora sua interpretação seja um pouco prejudicada pelas falas carentes de profundidade destinadas à sua personagem.
E se na parte técnica a produção conquista a pole position, essa carência de profundidade citada colocam o roteiro e a construção da história no meio para o final do grid. Apesar de não ser um motivo para deixar de assistir à minissérie, a superficialidade do texto pode incomodar parte do público. O uso insistente de falas de outros personagens com ensinamentos de vida a Senna escorrega para o piegas. Todo mundo tem uma frase de efeito pronta para ser dita em um momento oportuno, e tudo em um formalismo distante do comportamento normal. Além disso, as tentativas de justificar as decisões controversas ou mesmo erradas do ex-piloto também se mostram desnecessárias e dignas de pena. Suas falhas não são incoerentes naquele ambiente e não precisariam ser atenuadas, mas o texto segue em uma tentativa desesperada de não macular a imagem construída ao longo das décadas. A história até consegue nos mostrar um pouco mais do que o grande público esteja acostumado, mas tendo em vista o tempo de decorrido desde sua morte, haveria espaço para menos complacência. O que seria mostrado não diminuiria sua figura, especialmente pela fato das histórias serem de fácil acesso.
Em toda biografia existe o, nem sempre agradavel trabalho de priorizar determinados eventos. Apesar de acertar na maioria das escolhas privilegiar os anos nos quais Senna conquistou seus títulos acabou por deixar de fora momentos importantes, que renderiam ao menos mais um episódio. Ficaram de fora sua lendária primeira volta na corrida de Donington Park em 1993 (para quem não conhece é bom dar uma olhada também na primeira volta de um jovem Rubens Barrichello) e sua vitória em Mônaco em 1992, suportando uma pressão absurda de Nigel Mansell, personagem quase que completamente ignorado. A série peca em mencionar timidamente a conquista do GP do Brasil, quando a torcida invadiu a pista e ergueu Senna nos ombros. Essa uma hora a mais, discorrendo sobre os anos de 92 e especialmente 93 poderia também ter dado mais profundidade e justificado tecnicamente sua troca da McLaren para a Williams.
A minissérie também promoveu certa disparidade ao relegar apenas cerca de dois minutos de tela a Adriane Galisteu, em comparação com um episódio inteiro dedicado a Xuxa. Apesar de fazer sentido para a história a ser contada privilegiar um relacionamento de maior notoriedade, a diferença chama a atenção e colabora para a tese do controle familiar na narrativa e reforça a predileção por uma em detrimento à outra
É ignorada também pela produção a polêmica relação com Nelson Piquet, que envolveu provocações de Senna e declarações, digamos, pouco delicadas do compatriota que até hoje mantém um comportamento que, para alguns, é autêntico, mas que se revela cada vez mais incompatível com a evolução social desde a década de 80. Seria um, defensável motivo de não tocar no assunto, por outro lado deixar isso de fora mostra certo medo de levantar qualquer tema minimamente incômodo.
Ao final, a sensação é mista. Para aqueles que, como eu, viveram parte dos eventos e guardam memórias de acordar cedo nos domingos para acompanhar as corridas, que guarda recortes de jornal da época, que pendurava bandeira brasileira na janela (antes de tornar um dúbio sinal), que vibrava com a ufanista narração de Galvão e que se lembra o que estava fazendo em primeiro de maio de 94, a minissérie é um deleite gráfico que faz voltar no tempo. Carros, macacões, circuitos, publicidade, tudo beira a uma perfeição hollywoodiana. Mas, passados 30 anos dos eventos do GP de San Marino (circuito de Ímola) de 94 e com o amadurecimento daqueles que já passaram dos 40, talvez fosse o momento de mergulhar um pouco mais fundo e permitir mostrar os defeitos do ser humano Senna, abandonando um pouco a defesa intransigente da figura heróica. Perpetuar essa imagem mitológica simplifica um personagem complexo e fascinante, e reproduzir o mesmo discurso acaba o limitando. Permanecer no mesmo discurso pode ter como intenção mirar nas novas gerações ou aqueles não tão apegados às minúcias e assim manter sua áurea intacta, mas também acaba por não lhe dar a sua dimensão humana.
Apesar das derrapadas na narrativa, ao terminar de assistir, fica um gosto de que poderia haver mais um ou dois episódios mostrando mais carros, mais pilotos, mais corridas, porém também de que a abordagem dos seis episódios poderia ter sido outra, menos chapa branca, menos complacente e menos heróica.
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