Por Allan Mahet
César Romero, com seu bigode mal disfarçado pela maquiagem branca apresentou a primeira versão do Coringa fora das HQs. Seguindo a linha da série da década de 60 ofereceu um tom mais caricato e voltado ao público infanto juvenil.
No final da década de 80, nas mãos de Tim Burton, Batman ganhou o devido ar sombrio e seu principal vilão, com uma excepcional e por vezes exagerada interpretação de Jack Nicholson, refletiu esse momento.
Com Christopher Nolan, a franquia alcança um outro patamar nas adaptações de HQs no cinema. Excelentes roteiros, atuações e destreza na direção entregaram 3 ótimos filmes com especial atenção para o a "Dark Knight Rises" cujo Coringa incorporado por Heath Ledger personificava o caos.
Esquecendo Jared Leto chegamos a Joaquin Phoenix que gerou dúvidas quando seu nome foi divulgado e as primeiras fotos maquiado surgiram na internet. Dúvidas estas dirimidas, abolidas, eliminadas quando o trailer da adaptação ganhou o mundo. Em dois minutos de vídeo pode ser conferida pequena amostra da entrega de um dos maiores atores de sua geração ao papel do maior arqui inimigo do Batman.
Porém engana-se quem pensa se tratar de um filme de temática de quadrinhos. Aqui o Coringa é muito mais um canalizador das emoções tratadas no filme. Esse estudo poderia ter como protagonista qualquer pessoa, mas o palhaço mais conhecido de Gotham potencializa esses dramas pessoais e as consequências de suas ações. Mais do que nas demais representações cinematográficas, aqui o personagem é um conceito, uma ideia, um estopim.
A classificação R ganha nos cinemas americanos, indicando ser um filme apropriado para público acima dos 16 anos, já nos alertava para o uso bem explícito da violência e grande carga dramática, mas nada nos preparava para a intensidade e impacto que ele causaria. Talvez não seja indevido afirmar que Coringa seja o "Pulp Fiction" ou "Clube da Luta" desta geração. Em uma desagradável dicotomia, a cena mais violenta, crua e forte do filme, consegue arrancar risadas da plateia. De fato, como um comentário que rodou o mundo virtual bem posicionou, o filme pode falar mais das pessoas do que do dele próprio.
Todd Phillips (Se Beber Não Case) conduz com maestria a película cujo ritmo lento no quarto inicial oferece certo fôlego para o restante do filme quando a tensão, apreensão e certo desconforto permanecem ininterruptos até sua conclusão.
A fotografia primorosa de Lawrence Sher, que trabalhou com Philips na franquia "Se Beber Não Case", oferece um espetáculo visual e transforma cada frame em uma obra prima de luz e enquadramento perfeitos para explorar a carga emotiva que cada cena exige.
A trilha sonora (cuja polêmica envolvendo uma música de Gary Glitter, apesar de esclarecida, ainda pode afastá-la das principais premiações) é de uma precisão ímpar. Nenhum acorde é tocado fora de contexto e o espectador é imerso no mundo insano de Arthur Fleck num envolvente conjunto visual e sonoro.
Centralizador de grande parte da atenção voltada para o filme, a atuação de Joaquin Phoenix no papel título é algo de absurdo. A entrega física e mental dele ao personagem é de sair e pagar novo ingresso no cinema. Sem cair na cilada das comparações com o primoroso trabalho de Heath Ledger, é correto afirmar que Phoenix conseguir dar alma ao personagem como nunca antes feito. As diferentes risadas criadas pelo ator refletem as emoções do personagem, seus trejeitos ora contidos ora fluidos traduzem seu estado de espírito que em conjunto com suas expressões constroem na nossa frente a perfeita transformação de Arthur em seu alter ego. O momento exato em que passa da vergonha e medo para a sensação de poder e prazer gerados por sua primeira ação criminosa - a cena (improvisada) da dança no banheiro, é desconcertante de tão bem realizado. Esse momento de inflexão é o início, em sua mente, de seu sucesso, mas também representa sua tragédia pessoal. Se nada sobrenatural acontecer daqui a até o início do período de premiações, Joaquin Phoenix, provavelmente irá empilhar estatuetas e troféus.
Muito se comentou e questionou sobre uma possível glamourização e justificativa da violência promovida por "Coringa", tendo em vista seu estado psíquico e as diversas agressões físicas e mentais sofridas ao longo da vida. Em parte pode-se entender que o filme incline para esse lado, principalmente porque as vozes dissonantes são sempre daqueles que fazem o papel de opressores enquanto os oprimidos enxergam naquela figura um ícone contra o sistema. No entanto, um olhar mais apurado consegue identificar que muito mais do que dar voz aos que promovem o caos, o filme trata e alerta o caminho que nos leva, enquanto sociedade, a produzir mitos salvadores que dão a falsa impressão de romper com o status quo. Em última análise, "Coringa" promove uma intensa, perturbadora e aflitiva reflexão sobre a sonegação da saúde mental, a invisibilidade daqueles que encontram-se à margem da sociedade de consumo, a divinização da prosperidade material e a aceitação da desigualdade como estado natural e de como esse conjunto cruel nos direciona para o caos que a sociedade, sob um véu de distrações, não quer ou consegue enxergar.
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